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Desde o antigo Egipto até 2016: A história da interacção entre o Homem e o caimão

Desde o antigo Egipto até 2016: A história da interacção entre o Homem e o caimão

Uma equipa internacional coordenada por um investigador do CIBIO-InBIO – Universidade do Porto desvendou a relação histórica entre uma ave selvagem – o Caimão ou Galinha Sultana – e o ser humano, desde a antiguidade até aos dias de hoje.


O estudo que esteve na origem desta descoberta, recentemente publicado pela prestigiada revista Society & Animals e de acesso livre, surge como o resultado da colaboração entre biólogos e historiadores portugueses, espanhóis e italianos.

 

 

UMA AVE POPULAR DESDE TEMPOS IMEMORIAIS

Através da compilação de evidências iconográficas e registos documentais, desde o antigo Egipto até à actualidade, a equipa de investigadores envolvida neste estudo verificou que o Caimão ou Galinha Sultana (Porphyrio porphyrio) foi uma ave ornamental muito popular em várias épocas, tendo sido comercializada através das rotas existentes na antiguidade no Mar Mediterrâneo, principalmente durante o Império Romano.

 

 

DE AVE POPULAR A AVE RARA

O Caimão é actualmente uma ave selvagem e relativamente rara, que se encontra dispersa por zonas húmidas em torno do Mar Mediterrâneo, sendo que no nosso país a espécie quase se extinguiu durante o século passado. A sua área de distribuição esteve durante muito tempo confinada a uma pequena área no Parque Natural da Ria Formosa.
Até há bem pouco tempo, esta ave foi considerada pela União Europeia como um alvo prioritário para medidas de conservação devido à fragmentação do seu habitat, sendo a sua comercialização proibida. Aliás, durante a recolha de dados para este estudo, os membros da equipa de investigação estiveram envolvidos em vários projectos de reintrodução desta espécie em Portugal, Espanha e Itália, no contexto de grande esforço europeu destinado à conservação desta espécie.
Ao longo desse processo, foram “tropeçando” em várias evidências que culminaram numa vasta documentação histórica e espacial, que juntou quase uma centena de imagens e múltiplos testemunhos escritos. Tal como Ricardo Jorge Lopes explica, “estas imagens incluem desde gravuras em templos do antigo Egipto, mosaicos e frescos romanos e bizantinos em muitos locais ao redor do Mar Mediterrâneo, até gravuras em bestiários medievais e livros de história natural do Iluminismo”. O investigador do CIBIO-InBIO/U.Porto e coordenador deste estudo acrescenta ainda que “é de realçar a existência de vários mosaicos muito bem preservados, com a representação de caimões, nas ruínas de Conímbriga, no centro de Portugal”.

 

 

UMA DESCOBERTA SURPREENDENTE

Toda a investigação científica sobre a história evolutiva do caimão baseia-se na premissa de que as diferentes populações evoluíram por processo naturais. Segundo Ricardo, “é muito interessante sabermos que o Homem, com o transporte de aves ao longo do Mar Mediterrâneo, poderá ter alterado a sua diversidade genética e promovido a introdução de populações em novos locais”.
E a verdade é que os investigadores não estavam bem a contar com este cenário. “Por um lado, não estávamos à espera de encontrar tantas evidências que demonstram que esta ave era utilizada para adornar jardins em casas abastadas e em templos em várias zonas do Império Romano”, refere Ricardo. Uma das razões para este facto foi encontrada em registos documentais dessa época, que demostram que esta ave era considerada um símbolo da virtude e castidade, devido a uma lenda que descreve a morte por saudade do macho após ter sido abandonado pela sua fêmea. Havia a crença que se o macho morresse numa casa, seria sinal que a sua dona teria praticado adultério. Curiosamente esta lenda é ainda referida em livros do Renascimento e mesmo o nosso poeta Luís de Camões a utilizou num poema. Os investigadores acreditam que este tipo de crenças terá promovido a manutenção desta ave em cativeiro.

 

 

QUAL O IMPACTO DESTA DESCOBERTA E QUAIS OS PRÓXIMOS PASSOS?

Este estudo reforça a percepção de que a história fornece dados fundamentais para nos ajudar a conservar e gerir a biodiversidade e vice-versa. Para além disso, também nos permite conhecer melhor o tipo de interacção que o ser humano tem vindo a estabelecer com os animais que tem domesticado, e como se tem modificado em função das mesmas. “É fascinante revelar e documentar um exemplo de interacção bastante próxima entre o ser humano e uma ave. Geralmente, estas são referidas como exemplos de animais selvagens raros e dificilmente nos apercebemos que já tiveram um simbolismo tão importante para o ser humano”, comenta Ricardo.
Os investigadores pretendem agora construir um projecto de colaboração pública para compilar o máximo de registos iconográficos (mosaicos, frescos, baixo relevos, etc.) relativos a esta espécie numa base de dados livremente acessível pela internet. Nem todos os mosaicos estão registados em catálogos e por isso gostariam de poder contar com a ajuda de todos os cidadãos interessados, que visitem museus, monumentos ou locais arqueológicos, com vista a encontrar todas as representações da mesma. Por outro lado, irão continuar a ampliar a amostra de aves capturadas em todo o Mediterrânico (Marrocos, Argélia e Egito) e zonas limítrofes (Turquia, Irão, India, África subsaariana) para saber se a população mediterrânica apresenta evidências genéticas de trocas comerciais ao longo das rotas comerciais existentes durante o Império Romano.
Entretanto, é interessante destacar que esta investigação foi também o tema em destaque num dos episódios da série documental “Novas viagens philosophicas”, exibida recentemente na RTP 1, que se debruça sobre o trabalho desenvolvido por vários investigadores e grupos do CIBIO-InBIO.

 

 

Artigo original:
Lopes RJ, Gomez A, Andreotti A, Andreoni M (2016) Purple Swamphen or Gallinule (Porphyrio porphyrio) and Humans. Society & Animals. DOI: 10.1163/15685306-12341432.

 

 

Imagens:
Imagem 1. O Caimão no seu ambiente natural, zonas húmidas de água doce. Créditos: Ricardo Jorge Lopes.
Imagem 2. Um dos mosaicos que se encontram nas ruínas romanas de Conímbriga. Créditos: Ricardo Jorge Lopes.
Imagem 3. Pormenor da cabeça de um caimão. Créditos: Ricardo Jorge Lopes.

 

2016-11-17
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